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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Leitura construtiva

"Então, o que aconteceu a um certo Zatesky, da forma descrita por Lurija, aconteceu comigo: tendo perdido parte do cérebro durante a guerra, e com essa parte do cérebro toda a memória e a capacidade de falar, Zatesky, no entanto, era capaz de escrever: assim, sua mão escrevia automaticamente todas as informações que era incapaz de pensar e, passo a passo, reconstruía sua identidade ao ler o que escrevia."

Umberto Eco, em "Interpretação e Superinterpretação", pg. 103

sábado, 23 de outubro de 2010

A-firmação da incompletude

Não era desejado com furor, estando longe de ser um grande galã.
Não era admirado, como grandes gênios.
Não era visto como um ator, de grande plasticidade social.
Não era considerado funcionário do mês, nem pelos clientes e nem pelo seu chefe.
Não era destemido, para que lhe reconhecessem a coragem.

Nunca projetou sua sombra com grandes realizações sobre outras pessoas e nunca foi essencial, a não ser a si mesmo.

Mas ainda assim, estava vivo, e não sendo nada do que foi dito, ainda assim, por saber disso, aceitava, enquanto soubesse que, realmente, aquilo tudo não importava para ser tudo o que era agora e o que queria ser. Não que não pudesse (não se sabe se poderia, a não ser a princípio), mas via que sentir-se incompleto por aquilo tudo é que lhe daria incompletude real.

Aliás, foi na afirmação da negação é que se firmou o modo de afirmar-se.

domingo, 17 de outubro de 2010

Psicanálises: I - Possibilidades

À criança, disse o pai:
- Não faça isso, menino!
E foi lá a criança fazer outras coisas, que não fossem aquela.

Se não se sabe escolher, fica-se perdido.
Mas se uma alternativa não é possível, o resto é, e são muitas.

Um balanceamento entre as possibilidades e as impossibilidades sempre é necessário.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Auto-didatismo

Estar à deriva na vida, sem se deter em frente aos detalhes das coisas (como estar à frente da Notre Dame, soslaiar e depois continuar a seguir imensos roteiros, num estúpido consumismo), nos faz estar à deriva na vida.

Para aprender, é necessário nos determos.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Reencontros

Os seus olhos mareavam.
Era a segunda vez que fazia isso, depois de seus olhos correrem incessantes, ansiosos, aquelas letras rápidas, brilhantes e negras, anunciando o retorno dela... disse ele que não havia chorado muitas vezes na vida...
mas, ela, ela sempre conseguia, mesmo que não que quisesse (e nunca o quis, por que lhe importava era fazer brotar sorrisos)...

mas os olhos mareavam
o coração se abria
o sorriso expandia
a taquicardia florescia sobre teus dedos, ansiando dizer algo...

Um dia, deixou-a ir pelo rio, por que se ressentiu de algo que não houve. E, nas manhãs tristes em que a solidão, incompetentemente, caminhava ao seu lado ou almoçava com ele, montava sempre um álbum mental, com recortes de realidade... o álcool gel, as flores da faculdade, um encontro inesperado na fila do restaurante universitário, uma mensagem, uma ligação...

...mas agora, o peso no peito se extinguiu.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Anistia

" ...mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada." - Mateus 12:31

"O que é imperdoável?", ressoava como eco frente ao erro último teu. Enviava a carta esperando que os pequenos e belos olhos seguissem as flores que permearam seus últimos sorrisos.

"Há algo imperdoável?", retomava, enquanto a carta, ao cair, soava com um tom seco, reafirmando que a resposta não viria tão cedo e nem só com aquele ato de pretensa humildade, que faltou no que antecedeu a falha.

"O ódio e a intolerância violenta, a repressão, a ditadura... os homens mortos... quem lhes dará o perdão que os generais devem?", afirmava, enquanto lia a juventude fotografada em mártires, emolduradas em vontades de liberdade de ser; emolduradas no idealismo que acreditavam.

...mas, a raiva, o ódio ou a suposta justiça que haveria se não perdoássemos, realmente existiria, só porque não cederíamos o perdão? A não ser que se acredite que a maldade realmente domina as intenções de quem a praticou, ao invés de considerar-se que todos, sem exceção são frutos do entrelaçamento da mentalidade dominante de época com sua própria experiência de vida, não fará bater o coração dos que se foram, mas somente dos que ficaram numa taquicardia raivosa...

Querer a justiça na forma de não-anistia só faz surgir, no fluxo das águas, pequenos redemoinhos, que logo morrem, como todos dentro do próprio rio...

...e alimenta o ciclo, de ódio.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Remendo

As passadas cartas, banhadas de saudade e de muito arrependimento, ainda flutuam dentro da alma do inexperiente marinheiro dos sentimentos.

Doem ainda, mas agora elas soam um pouco mais opacas: ganharam aquele jeito baço das coisas que atritam muito com a rispidez e insensibilidade do tempo... que, ao lado de novas vontades, de novas veredas misteriosas, exalam um quê de coisa estranha, de coisa até desconhecida...

Não que um dia vá morrer: cada pedaço é mais que célula viva.

Mas...
passa.