Foto: sxc.hu

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Sufocamento

Toda semana ele perguntava a ela sobre quando poderiam sair e lhe contava sobre suas viagens e suas idéias.
E ela nunca podia sair, apesar de parecer gostar de lhe ouvir. Um dia, ele resolveu mudar.

Pensou que ela deveria respirar e que não deixá-la fazer isso descaracterizaria as vontades dela.
Hoje, ele que está esperando ela ligar.

Mas acho que isso não será feito.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Sete palmos são sete palmos

Era uma pessoa tímida, que alguma espécie de medo ao contato com o próximo a impedia de realizar seu desejo mais profundo: encontrar sua alma gêmea. Imagem esta já bem formada, de um moço de cavalo e intenções brancas. Um dia ela encontrou um demônio montado num dragão e quis mudá-lo. Ela apanhava todo dia.

De desgosto, morreu cedo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Tropa ignóbil

O ranço que escorria do pessimismo ignorante se refestelava dentro das suas bocas.

Teus risos unilaterais, monologantes, parecem até justificar o doce gosto que vem dos podres e infestados pensamentos imediatistas, alienados, que insinuam o tom dos clichês que se atribuem aos que se esforçam por não cair na velha conversa da verdade absoluta (Foucalt que o diga!): inocentes, idealistas, extremistas, radicais, "socialistas", "anarquistas" (e muito mais outros movimentos políticos estereotipados pela tacanhez, alheia a compreensão dos processos)... mas, sabe, estes teus chicletes não passam de angústia disfarçada de escudo brilhante.

A sutileza linguística era uma das suas armas: tratavam de diminutivar na mesma proporção do tamanho da sombra que sua soberba fazia pairar sobre os outros. E era assim: não ousasse ninguém captar essa manobra mental, por que senão o manjado discurso da não aceitação de opiniões emergiria.

Claro que, com menos do que o próprio cérebro, não era muito complicado compreender a demanda do pisar alheio: é a velha história de ser a partir do não-ser dos outros.

Será que a escuridão só existe na medida em que não há luz?

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O bêbado

Olhavam com assombro para o pobre embriagado.
Questionou-se sobre onde ele estava... tentei dizer o bairro, como se isso talvez suprisse a pergunta, o que depois percebi que não. Arbitrariou que seu destino era o metrô, estando num ônibus que tinha passado há muito pelo Consolação... o motorista então o instruiu a atravessar para o outro lado de uma rua que não o ia deixar cumprir tal tarefa... desacatando a altivez com que se impunha a velocidade capitalistamente necessária do ônibus, o motorista do coletivo se vestiu com o resto das minhas esperanças que ainda tenho na humanidade, daquelas que vem com um óculos que nem aqueles 3-D, mas que fazem a gente ver que antes de bêbado, estava ali o homem, com um problema que não sabíamos, e se decidiu.

Pousando sublimemente o ônibus, o motorista se ergueu como se brandisse a todos a obrigação de ser humano com os humanos. Guiando o ébrio até o outro lado da rua, deve tê-lo instruído sobre quais ônibus pegar e depois, talvez ainda sentindo o poder de re-humanização que tais tipos de coisas conseguem fazer, pensava alto, inclusive sobre a atitude primeira que havia considerado, que era a de largar o homem naquele estado à sorte da neutralidade de culpa dos carros.

Pensava alto, pedindo perdão talvez. Mal sabia ele que seu ato havia construído o perdão ali, havia construído um dia incomum, que não o seria num dia em que o seu não-ato implicaria no corpo estendido de um bêbado.

Não menos que um sincero aperto de mão este verdadeiro ser humano merece.